O Sindicato dos Médicos do Estado de Sergipe (Sindimed) esteve em São Paulo nessa segunda-feira, 15 de setembro, para investigar uma denúncia de grande repercussão que coloca em xeque a transparência e a regularidade de contratos na saúde pública sergipana. A apuração, coordenada pelo presidente da entidade sindical, Dr. Helton Monteiro, teve como foco a empresa Centro Cardio Serviços Hospitalares, contratada pela Organização Social (OS) Irmandade Boituva de Saúde e Educação, responsável pela administração do Hospital da Criança Dr. José Machado de Souza, em Aracaju.
O objetivo do sindicato foi verificar informações que chegaram por meio de médicos e profissionais de saúde acerca da legalidade e da estrutura da empresa quarteirizada, cuja atuação tem impacto direto na assistência pediátrica da rede pública estadual. O que se descobriu em São Paulo, no entanto, acendeu ainda mais sinais de alerta.
Endereço incompatível
No Termo de Adesão ao Contrato Social da Sociedade em Conta de Participação – Centro Cardio Serviços Hospitalares, entregue aos profissionais para assinatura, constam dois CNPJs distintos: um vinculado à Rua da Glória, de nº 46.053.822/0001-31, e tem como responsável o empresário Carlos Alexandre Mendes. O outro situado à Avenida Mofarrej, nº 348, Vila Leopoldina, São Paulo, de nº 27.521.436/0001-82.
O Sindimed apurou e constatou que o endereço informado como sede da empresa Centro Cardio Serviços Hospitalares, localizado na Rua da Glória, nº 38, bairro Liberdade, em São Paulo, não corresponde à atividade declarada. No local, funciona, na realidade, uma loja de outlet de frutos do mar. O contrato de adesão apresentado aos médicos em Aracaju indicava aquele endereço como referência oficial da empresa responsável por gerir vínculos de trabalho.
Ao visitar o segundo endereço, na Avenida Mofarrej, no edifício Upper Office, a equipe do sindicato foi informada de que se trata apenas de um escritório virtual de contabilidade, sem sede física da clínica, e funciona apenas como registro de uma empresa unipessoal. Nesse formato jurídico, não é possível legalmente formar sociedade por cotas, como previa o contrato oferecido aos médicos.
“A sociedade corre risco. O Estado de Sergipe repassa à Irmandade Boituva a gestão do Hospital da Criança, e essa contrata uma empresa que sequer tem endereço regular. Pior: coloca os médicos como sócios de uma sociedade de cotas com uma empresa de localização no mínimo duvidosa”, questionou o presidente do Sindimed, Dr. Helton Monteiro, durante a apuração em São Paulo.
Mais grave ainda: a investigação identificou que o CNPJ de nº 46.053.822/0001-31, domiciliado na rua da Glória, nº 38, não consta como inscrito no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) nem na Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp), elementos básicos de regularidade para uma empresa que se propõe a atuar na área da saúde. Já o CNPJ de nº 27.521.436/0001-82, domiciliado na Avenida Mofarrej, possui registro ativo no CREMESP.
Morte em clínica
A investigação trouxe à luz ainda um episódio trágico ocorrido no mesmo endereço da Rua da Glória, nº 38. Em 17 de fevereiro de 2021, uma explosão atingiu a clínica “Saúde Aqui”, que funcionava no local à época. O acidente resultou na morte da mulher trans Lorena Muniz, que havia sido submetida a um procedimento estético em uma clínica que não possuía habilitação para cirurgias de grande porte. O caso teve ampla repercussão nacional e expôs graves falhas de fiscalização e segurança.
“Estamos diante de uma situação preocupante. No mesmo endereço onde houve uma morte em circunstâncias de negligência, agora figura a sede de uma empresa que tenta contratar médicos por meio de mecanismos obscuros. É um risco para os profissionais e para a sociedade”, reforçou o líder sindical.
Experiência contestada
Outro ponto que desperta preocupação é o histórico da própria Irmandade Boituva de Saúde e Educação. No dia 29 de agosto de 2025, a entidade participou de um chamamento público promovido pela Prefeitura de Diadema (SP) para selecionar uma Organização Social responsável pelo gerenciamento, operacionalização e execução dos serviços de saúde do Hospital Municipal Dra. Zilda Arns Neumann.
No entanto, a Irmandade foi reprovada por não comprovar capacidade técnica e experiência suficientes para assumir a gestão. Apesar desse histórico recente e negativo, em Sergipe, a mesma OS foi habilitada para administrar o Hospital da Criança Dr. José Machado de Souza, levantando questionamentos sobre os critérios utilizados pelo governo estadual para legitimar sua contratação.
“Se em Diadema a Organização Social não demonstrou capacidade técnica, por que aqui em Sergipe ela foi aceita? Governador, a sociedade espera uma resposta”, questionou o presidente do Sindimed.
Relatos dos médicos
As denúncias não se limitaram à investigação documental. Médicos que atuam no Hospital da Criança relataram, sob anonimato, irregularidades na forma como os contratos foram oferecidos.
“Só no dia 5 de setembro nos enviaram os contratos para assinatura. Quando vimos, percebemos que seríamos sócios da empresa Centro Cardio Serviços Hospitalares, em regime de cotas. Nunca tínhamos visto esse tipo de contrato. Levamos para advogados e todos disseram que era ilegal. Muitos colegas já pensam em deixar as escalas a partir de outubro. Até agora trabalhamos de forma informal, sem assinatura oficial”, relatou um dos profissionais.
E mais: na última segunda-feira, dia 15, a Irmandade Boituva convocou uma reunião com os médicos pediatras do Hospital da Criança. Durante o encontro, segundo relatos, os profissionais teriam sido ameaçados a aceitar vínculo com a empresa Centro Cardio, sob o risco de serem substituídos por médicos de fora do Estado.
O episódio ganhou contornos ainda mais graves quando Carlos Alexandre Mendes se apresentou como diretor da própria Irmandade Boituva, reforçando as suspeitas sobre a condução e transparência da gestão.
Diante desse quadro, o presidente do Sindimed, Dr. Helton Monteiro, afirmou de maneira categórica que o sindicato não admitirá situações de assédio moral, ameaças ou contratos que exponham médicos a riscos.
“O Sindimed não aceitará assédio moral, ameaças ou contratos que exponham médicos a riscos jurídicos e profissionais. Orientamos que nenhum colega vincule seu CPF a uma empresa cuja procedência não é clara. A sociedade precisa compreender a gravidade do que está acontecendo. O caminho correto é a realização de concurso público, com carreiras dignas e salários justos. É inadmissível que, em pleno século XXI, vidas sejam entregues a modelos de gestão pautados em interesses políticos”, destacou.
Balanço da investigação
Para o presidente do Sindimed, a apuração realizada em São Paulo expôs um conjunto preocupante de irregularidades que colocam em xeque a credibilidade da gestão do Hospital da Criança Dr. José Machado de Souza. Entre os principais achados estão endereços fictícios, contratos com CNPJs conflitantes, vínculos societários questionáveis, além de um histórico de tragédias ligadas ao mesmo local onde a empresa se declara sediada.
A isso soma-se a contestada capacidade técnica da OS Irmandade Boituva, responsável pelo contrato em Sergipe.
Diante desse quadro, o dirigente sindical reforça que cabe ao Governo do Estado dar respostas imediatas à sociedade. Enquanto isso não acontece, médicos e pacientes permanecem submetidos a um sistema que, em vez de fortalecer o SUS, suscita dúvidas sobre a legalidade, a transparência e a segurança da assistência prestada.
Repercussão política após a denúncia
A divulgação do vídeo investigativo produzido pelo Sindimed nesta terça-feira, 16, repercutiu fortemente nos parlamentos estadual e municipal.
Na Assembleia Legislativa de Sergipe (Alese), a deputada estadual Linda Brasil (Psol) exibiu o material em plenário e destacou a gravidade das constatações. Ela lembrou que o endereço indicado como sede da empresa, na Rua da Glória, nº 38, em São Paulo, é na realidade uma loja de outlet de frutos do mar, e que os contratos apresentados aos médicos trazem dois CNPJs diferentes, ambos vinculados a locais onde a empresa não funciona.
“Isso é muito grave, precisa ser denunciado ao Ministério Público para que haja uma investigação rigorosa, e o Governo do Estado precisa se pronunciar, já que é responsável pela contratação da OS”, afirmou a parlamentar.
Linda Brasil ressaltou relatos de médicos que estariam sendo coagidos a assinar contratos de sociedade por Cota de Participação, modalidade considerada ilegal. “Há denúncias de que, caso não assinem, os profissionais podem ser substituídos por médicos de fora. Isso é uma forma de ameaça e precarização do trabalho”, criticou.
Também na Alese, o deputado Marcos Oliveira (PL) classificou as descobertas como indício claro de corrupção. Segundo ele, “as denúncias estão aí: uma empresa fantasma subcontratada para o Hospital da Criança, que dá sinais de não prestar serviços efetivos, apenas emitindo notas fiscais. O Estado repassa recursos à OS, que precisa justificar os gastos, mas contrata uma empresa cujo endereço é um outlet de frutos do mar em São Paulo. O que fica de aparência é que estão apenas vendendo nota, e o nome disso é corrupção. É o povo sergipano quem paga essa conta”, colocou.
Na Câmara Municipal de Aracaju, o vereador Iran Barbosa (PSOL) também repercutiu a denúncia. Para ele, o caso é gravíssimo e precisa ser apurado com rigor, pois se trata de um hospital localizado na capital e destinado à população aracajuana.
O parlamentar advertiu que esse tipo de problema decorre da transferência de responsabilidades do Estado para Organizações Sociais. “O Estado terceiriza para uma OS, que ‘quarteiriza’ para uma empresa de capital único, e ainda impõe aos médicos contratos como sócios cotistas, o que é ilegal. Isso é muito sério”, alertou, apelando ainda ao Ministério Público Estadual, ao Tribunal de Contas do Estado de Sergipe e à própria Assembleia Legislativa para que aprofundem as investigações.
“Precisamos preservar o nosso Estado de práticas danosas como essa. A denúncia do Sindimed é séria, exige investigação cuidadosa e, caso seja comprovada, medidas imediatas. Fica também o alerta sobre os perigos de terceirizações e quarteirizações que abrem brechas para situações como essa”, concluiu.
| Por Joângelo Custódio, jornalista da Assessoria de Comunicação Sindimed.