Por trás de cada dado, há uma infância interrompida. Há um corpo pequeno demais para a maternidade, um ser ainda frágil para suportar o peso da violência sexual disfarçada de silêncio social. Em um tempo em que a infância deveria ser sinônimo de brinquedos, escola e descobertas, muitas meninas em Sergipe têm vivido uma realidade marcada pela dor precoce da maternidade forçada. É contra essa ferida aberta que se levanta, com força e urgência, a campanha ‘Zero Gravidez na Infância’, lançada nesta quinta-feira, 15, no auditório da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
A iniciativa, liderada pelo Comitê Estadual de Prevenção da Mortalidade Materna, Infantil e Fetal (CEPMMIF), com apoio irrestrito do Sindicato dos Médicos do Estado de Sergipe (Sindimed), tem um objetivo ousado, mas absolutamente necessário: erradicar, até 2030, os casos de gravidez em meninas com menos de 14 anos no estado de Sergipe.
Representando o Sindimed, o presidente da entidade, Dr. Helton Monteiro, reforçou o papel da categoria médica no combate à violência sexual de meninas.
“A gente entende como fundamental, nessa campanha, a participação dos médicos, do Sindicato dos Médicos e dos demais profissionais de saúde, para combater essa forma de violência sexual — que muitas vezes passa despercebida no dia a dia dos nossos consultórios, nos locais onde atendemos. O Sindicato dos Médicos está participando, está engajado, junto com o Comitê de Prevenção da Mortalidade Materna, Infantil e Fetal de Sergipe. E, juntos, vamos construir um Comitê com todas as entidades aqui representadas: Defensoria Pública, a Rede de Mulheres... Todos organizados, vamos construir coletivamente propostas, fluxogramas, para que os profissionais, no dia a dia, também possam, dentro de seus locais de trabalho, lá na ponta, saber como agir nos casos de violência infantil e também nos casos de violência na adolescência", disse.
O lançamento da campanha marcou também o início das comemorações pelos 57 anos da UFS. Um gesto simbólico, segundo a vice-reitora da instituição, professora Silvana Bretas. “Nosso primeiro ato comemorativo foi aderir a essa causa, porque ela diz respeito à defesa da infância, ao compromisso com os direitos das crianças e com o futuro da sociedade. É uma posição inequívoca da nossa gestão frente a pautas que são urgentes, necessárias e que ainda enfrentam resistência social”, declarou.
Números assustam
De acordo com o CEPMMIF, somente em 2024, 183 meninas com menos de 14 anos se tornaram mães em Sergipe. E os números assustam ainda mais quando analisados em retrospectiva: mais de 1.200 crianças se tornaram mães nos últimos cinco anos no estado. Um cenário que exige respostas articuladas, políticas públicas eficazes e mobilização social.
É justamente sobre essa base que se ergue a campanha. Em sua fala, a presidente do CEPMMIF e professora da UFS, Dra. Priscila Batista, reforçou o espírito coletivo do projeto.
“É um movimento de muitas mãos, de instituições, pessoas e organizações. Estamos animados com a adesão e o entusiasmo de todos em abraçar essa causa. Queremos fazer de Sergipe o primeiro estado do país a erradicar a gravidez na infância. Porque criança não é mãe. E isso precisa ser repetido, até que se torne uma verdade inquestionável”.
Priscila lembrou que, embora haja uma queda gradual nos números — cerca de 30% nos últimos quatro anos — ainda há muito por fazer. “Queremos que, até 2030, esse número seja residual ou inexistente. E que a gravidez na infância seja tratada com a mesma seriedade que outras questões epidemiológicas de saúde pública”, reforçou.
Panorama epidemiológico
A campanha também conta com o apoio técnico da Secretaria de Estado da Saúde. O médico sanitarista Paulo Ribeiro apresentou um panorama epidemiológico estarrecedor: entre 2020 e 2024, Sergipe registrou 133 procedimentos de curetagem pós-aborto em meninas com menos de 14 anos.
Aracaju lidera os registros de gravidez infantil, seguida por Nossa Senhora do Socorro, São Cristóvão e outros municípios do interior. A maioria das gestantes precoces é de cor parda (63,3%) e estudante (quando não já afastada da escola), o que reforça o impacto social e racial da problemática.
Ainda segundo os dados apresentados por Paulo, 55% das meninas grávidas realizaram mais de sete consultas de pré-natal. Um dado que, embora positivo em termos de assistência, escancara o grau de ‘normalização’ da gestação em crianças.
“Hoje vim apresentar um panorama do cenário epidemiológico das crianças que estão se tornando mães aqui no estado. Nos últimos cinco anos, registramos mais de 1.200 casos — um dado alarmante.
Felizmente, esse número vem caindo nos últimos anos. Para se ter uma ideia, já chegamos a ter mais de 400 casos por ano, e em 2024 fechamos com 190. A meta, alinhada à proposta da campanha, é alcançar zero gravidez na infância. A partir desses dados, buscamos compreender melhor a realidade do estado, para que possamos articular políticas públicas intersetoriais, com foco direto na proteção da saúde e da integridade dessas crianças”, detalhou.
Cartilha Aborto Legal
Nesse esforço coletivo, a Defensoria Pública do Estado lançou, durante o evento, a cartilha “Violência Sexual e Direito ao Aborto Legal, Conheça os Seus Direitos”.
A defensora pública Betina Schreiner destacou que o material busca esclarecer não apenas a população, mas principalmente os profissionais de saúde sobre os direitos legais das vítimas.
“Meninas com menos de 14 anos, mesmo que aleguem ‘consentimento’, são consideradas legalmente vítimas de estupro. A lei é clara: não há consentimento possível. E, nesses casos, o aborto é legal e deve ser ofertado com acolhimento, sem julgamentos”, enfatizou.
Betina frisou ainda que não é necessária autorização judicial ou boletim de ocorrência para que o procedimento seja realizado. “A denúncia é uma escolha da vítima. O atendimento humanizado deve vir primeiro. Os profissionais precisam estar preparados para agir com empatia, segurança jurídica e compromisso com os direitos humanos”, colocou.
Presente à cerimônia, o Procurador da República, Igor Miranda, destacou a importância da iniciativa como vetor de transformação social.
“Essa campanha não é apenas um apelo à razão, mas um chamado à consciência coletiva. Parabenizo o Comitê e o Sindimed por enfrentarem uma realidade que impacta diretamente nos índices de mortalidade infantil e que exige de todos nós — enquanto sociedade — uma postura de enfrentamento e proteção”, declarou.
Dados nacionais
A gravidez precoce, especialmente em meninas abaixo dos 14 anos, além de um crime, é um fator de risco grave à saúde: pode provocar prematuridade, abortos espontâneos, depressão pós-parto, anemia, eclampsia e morte materna. É um ciclo de violências que perpetua a desigualdade, o abandono e o trauma.
No Brasil, segundo o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), 1.043 adolescentes se tornam mães todos os dias. A cada hora, 44 bebês nascem de meninas adolescentes — e, entre elas, duas têm entre 10 e 14 anos.
Frente a essa realidade, a campanha ‘Zero Gravidez na Infância’ se coloca como um grito urgente. Uma convocação à mudança. Uma aposta em cada menina que, antes de qualquer coisa, tem o direito de ser apenas o que é: criança.
Participação
Além do Sindimed, a cerimônia reuniu representantes da UFS, do Comitê Estadual de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, da Secretaria de Estado da Saúde, da Procuradoria da Mulher da Assembleia Legislativa, do Ministério Público Estadual, do Tribunal de Justiça de Sergipe, da Rede Solidária de Mulheres e outras instituições públicas e civis.
Por Joangelo Custódio, da Assessoria de Comunicação Sindimed.